sexta-feira, 15 de outubro de 2010

conto

- Que árvore era essa?
- Não era uma, eram duas. Espera, eu conto. Você quer ouvir?
Apressada, ela fez que sim com a cabeça. Sem ver direito o rosto dele, percebeu que sorria talvez irônico. Ou amargo, ou triste, ou apenas distante, compreendeu melhor, encolhendo-se contra a guarda da cama. E aquilo de repente pareceu talvez respeito, submissão ou interesse, porque ele começou a falar:
- No começo, achei que era uma árvore só. Eu a vi de longe, eu vinha caminhando e lá estava ela, enorme, toda florida, assim com pencas de flores de todas as cores, mas acho que principalmente roxas e amarelas, despencando até o chão. Não parecia de verdade, parecia uma coisa desenhada, assim meio de quadro, de ilustração de história infantil, filme de Walt Disney. Sabe Branca de Neve? - Ela sorriu também, cruzando os braços sobre os seios tranqüilizada. Ele não percebeu. - Uma árvore assim, de fantasia. A mais bonita que eu já tinha visto em toda a minha vida. Aí eu parei e fiquei olhando. Tinha uma coisa forte ali me chamando e eu não conseguia ir em frente, eu devo ter hesitado muito tempo antes de chegar cada vez mais perto, e de repente eu estava dentro dela. Não, espera, não foi assim. Entre os ramos cobertos de flores havia uma espécie de vão, uma fresta, uma porta, e eu fui entrando por ela até ficar dentro daquela coisa colorida. Era escuro lá dentro. Era cheio de galhos trançados e torturados, e muito escuro, e muito úmido, parecia assim ter feito uma grande dor ali cravada naquele centro cheio de folhas apodrecidas e flores murchas no chão. Pelo vão, pela fresta, pela porta eu conseguia ver o sol lá fora. Mas aquele lugar era longe do sol. Era uma coisa, uma coisa assim desesperada e medonha, você me entende? Então pensei em sair lá de dentro imediatamente, sem olhar para trás, mas ao mesmo tempo que queria ir embora, queria também ficar para sempre lá, e se me descuidasse, se alguma coisa mínima em mim perdesse o controle eu me encolheria ali naquele chão frio, olhando os galhos tão emaranhados que não passava nunca um fio daquela luz do sol lá de fora. Eu fui embora, eu não queria olhar para trás, mas sem querer olhei e lá estava ela de novo como eu a tinha visto da primeira vez.
Uma árvore encantada, dessas que você pode fazer pedidos e talvez entrar num estado especial embaixo dela e ver, como se chamam, como é mesmo? os devas, isso, os devas, as ninfas, os faunos. Vista de fora, de onde eu estava, era uma árvore assim, com um lindo deva que eu quase via, roxo e amarelo como as flores, meio que dançando, quem sabe tocando flauta em volta dela. Então lembrei do escuro e achei que entendia e sem querer formulei com dificuldade uma coisa mais ou menos assim: é daquele emaranhado cheio de dor e angústia fria e solidão escura que ela arranca essa beleza que joga para fora. - Ele parecia muito cansado quando parou de falar e perguntou: - Você entende?
- Foi lá? - ela perguntou bruta. Ele não respondeu. Ela estendeu a mão para o maço de cigarros, acendeu outro que tragou quase com fúria. Passou-o para a mão esquerda e estendeu a direita para ele, cravando as unhas em seu braço. - Foi lá? - repetiu. - Eu preciso saber. Me diga, foi lá, naquele lugar? Meu Deus, você ainda não esqueceu aquele maldito lugar?
Como se não tivesse escutado, ele tocou de manso as unhas cravadas em seu braço com a mão também grande e quieta.
- Você entende?
Ela relaxou a pressão.
- Entendo, claro que entendo. - Recolheu a mão, baixou a voz. - É uma história bonita. E tão... tão simbólica, não é? - Suspirou, exausta. - É assim que você se sente? Eu entendo, claro que eu entendo muito bem, melhor do que você possa imaginar. Muito melhor, meu bem. - Passou devagar os dedos sobre os pêlos crespos do peito dele. Se houvesse mais luz, agora poderia ver os pêlos se adensando grisalhos em direção ao umbigo, e quem sabe até mesmo sentir então o que sentia sempre: aquela espécie de piedade comovida, semelhante a algo que tinham dito, certa vez, chamar-se carinho, ternura, amor ou qualquer outra coisa dessas. Mas no escuro, apenas sentindo os pêlos macios e frágeis cedendo sob a pressão das pontas de seus dedos, assim, agora: não sentia nada. Uma secura como a do cigarro que tragou novamente, queimando com raiva a garganta. Tossiu.
- Mas não acabou - ele disse.
- O quê?
- Não acabou, a história ainda não acabou.
Ela percebeu que ele ria. Mas já não havia tristeza nem ironia no riso. Qualquer coisa mais densa, localizou. E retirou a mão do peito dele ao descobrir. Era um riso silencioso e mau, um riso de canto de boca, dentes cerrados que não se mostram. Ele estava próximo agora, inteiramente ali, entre o corpo dela e a porta do quarto dando para corredores e salas subitamente tão desertos que ninguém os ouviria se gritassem. Mas não gritariam, ela acalmou-se, que era tanto tempo, tanta coisa vivida juntos, não, não gritariam. Ele continuou a falar:
- Voltei lá no dia seguinte. Eu estava frio, eu não sentia coisa alguma, eu não tinha mais aquele horror de estar dentro da árvore nem aquele encantamento de estar fora dela, entende? Então fiquei andando em volta dela e olhando bem, até perceber que eram duas árvores. Sabe uma dessas árvores que dá na beira dos rios? Essa caída, de galhos até o chão, uma árvore grande que parece sempre cansada e triste.
- Um chorão - ela falou. - Um salgueiro. - E soltou os ombros, quase leve.
- Isso. Um salgueiro, um chorão. A outra, aquela cheia de flores, era uma primavera. Eu lembrei então de uns versos que você gostava de dizer, faz muito tempo. Como eram mesmo aqueles versos que falavam em primaveras, em morrer, em nascer de novo? Como eram, você lembra? - ele perguntou subitamente ansioso e meio infantil, puxando-a pelo pé como fazia às vezes nas manhãs de domingo, quando ela demorava a acordar e ele insistia cantando cantigas inventadas num ritmo de caixinha de música: Venha ver o sol oh meu amor! vista sua saia, vamos para a praia! o dia está tão lindo oh meu amor! hoje é domingo lindo de sol.
Uma onda quente feito uma alegria subiu desde o pé onde ele tocava até o rosto dela, fazendo os seios arfarem um pouco ao dizer:
- Cecília Meireles, era Cecília Meireles, era um poema assim que eu dizia: “Levai-me por onde quiserdes! aprendi com as primaveras a deixar-me cortar! e a voltar sempre inteira”.
Ele apagou o cigarro. Depois bateu palmas como uma criança:
- Que bonito, que bonito. Como é mesmo? - E recitaram juntos, como uma professora séria e um pouco velha e paciente e vagamente apaixonada por um aluno rebelde: “Levai-me por onde quiserdes! aprendi com as primaveras a deixar-me cortar! e a voltar sempre inteira”.
De repente ele deu um salto sobre a cama e ficou em cima dela, rindo enquanto enfiava a língua morna nas suas orelhas. Sobre a camisola, ela podia sentir os músculos duros das coxas dele apertadas contra as suas.
- Era um caso de amor - ele disse baixinho no ouvido dela. - O salgueiro e a primavera, era um lindo caso de amor entre duas árvores.
Ela trançou as mãos nas costas dele, aquelas costas largas de homem grande, aquele cheiro bom de bicho limpo que ela conhecia fundo, há tanto tempo. E enquanto ele roçava lento uma boca móvel e molhada pelo seu pescoço, ela abriu suave as pernas, rodando a bacia como numa dança oriental, até sentir o volume do sexo dele enrijecendo aos poucos sobre seu ventre. Desceu a mão pela cintura dele, para enfiá-la sob o tecido fino do pijama, acariciando a bunda que se movia sobre ela. E lambeu aquelas orelhas grandes de homem tão profundamente e há tanto tempo seu, intensificando os movimentos até o membro dele ficar tão rígido que escapou de dentro do pijama para roçar, quente, a barriga dela.
- Vem - pediu. - Meu menino louco.
Mas ele levantou-se tão brusco que a súbita ausência de peso fez com que ela sentisse uma espécie de tontura.
- Não - ele disse. - E recuou outra vez até a ponta da cama. - A história ainda não terminou.
- Ai, Deus, a maldita árvore de novo?
- A maldita árvore - ele repetiu lentamente.
- Mas ainda? - ela tentou rir, mas ele estava distante outra vez. De repente alguma coisa tinha se transformado em outra, e percebendo a transformação só depois de falar como se nada tivesse se transformado, ela sabia apenas se comportar de acordo com um momento antigo, não com este novo, desconhecido. - Então conta - pediu, sabendo de maneira obscura que não era assim, que não era mais assim, que de alguma forma nunca mais seria assim. Cruzou os braços como quem fala com uma criança. - Mas conta rápido.
- Bem rápido, não se preocupe. No outro dia, o terceiro dia, eu voltei lá. Foi a última vez que voltei. Não foi preciso voltar mais. E dessa última vez, eu vi tudo. Eu descobri.
A claridade cinza do dia nascendo varava as frestas da persiana.
- Então? - ela perguntou. - E aí?
O homem pegou a caixinha de música e ficou com ela entre as mãos, como se fosse tocar. Com a luz mortiça da manhã iluminando o rosto dele, ela agora podia ver os olhos muito abertos, fixos em algo que ela não via, a barba por fazer, a mão parada no ar e o grisalho dos pêlos no peito. E continuava sem sentir nada, a não ser um calor fugindo entre as coxas.
Ele não dizia nada.
- O que foi que você descobriu?
Ele sorriu sem mover músculo algum do rosto. Apenas os cantos da boca ergueram-se rápidos, como se alguém apertasse um botão ou puxasse um fio oculto. Girou nas mãos a caixinha.
- Descobri que não era um caso de amor, O salgueiro estava seco, morto. A primavera tinha assassinado ele. Não era um caso de amor. Ela estrangulou, vampirizou, assassinou ele. Aquela escuridão de dentro era a fraqueza dele, o fracasso dele, a morte dele. Você está me entendendo? Eu vou falar bem devagar para que você compreenda: aquela loucura de flores e cores do lado de fora era a vitória dela. A vitória da vaidade dela às custas da vida dele. Uma vitória louca, você está ouvindo?
Como se tivesse frio, ela encolheu-se violentamente. Sem querer, olhou para o lado e viu o relógio. Eram cinco e quinze da manhã. Ele repetiu:
- Uma vitória louca, uma vitória doente. Não era amor. Aquilo era solidão e loucura, podridão e morte. Não era um caso de amor. Amor não tem nada a ver com isso. Ela era uma parasita. Ela o matou porque era uma parasita. Porque não conseguia viver sozinha. Ela o sugou como um vampiro, até a última gota, para que pudesse exibir ao mundo aquelas flores roxas e amarelas. Aquelas flores imundas. Aquelas flores nojentas. Amor não mata. Não destrói, não é assim. Aquilo era outra coisa. Aquilo é ódio.
Muito calma e um tanto casual, acendendo outro cigarro, afastando uma mecha de cabelos da testa um pouco fria, um pouco suada, mas nada de grave, a mulher ergueu levemente a sobrancelha esquerda, num gesto muito seu, um gesto cotidiano, habitual e sem novidades, que usava muito ao fazer compras, indagando preços, ao estender uma xícara de chá, ao dar ordens à empregada, ao girar o botão ligando o televisor, e perguntou absolutamente tranqüila, absolutamente controlada, absolutamente segura de si:
- Você está querendo dizer que acha que eu o destruí?
- Como?

Nenhum comentário:

Postar um comentário